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Um canto de experimentação curricular

Julia Bardi[1]

 

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças

Manoel de Barros

 

Abro essa reflexão com uma cena do filme Os Incompreendidos, de François Truffaut (1959): uma turma de alunos sai da escola para uma aula de educação física, o professor comanda uma corrida pelas ruas da cidade. Porém, o professor, na frente e de costas para a turma, não percebe que, a cada esquina, um pequeno grupo de alunos é cativado por outra coisa mais interessante do que aquela corrida e abandona a aula. Aos poucos, a turma vai se esvaziando. No fim da cena, o professor está sozinho correndo, mas segue dando orientações, pois não percebeu que os alunos não estão mais ali. De forma humorada, essa cena ilustra o que Gilles Deleuze já alertava ao falar sobre uma aula: nem tudo convém a todo mundo.

Penso que muito do encantamento causado pelo projeto A construção coletiva do espaço: habitar e construir, em todos que dele participaram, tem a ver com a profusão de saberes e fazeres – que se alimentavam mutuamente no processo. Em cada etapa, alguma das diversas alternativas convinha a cada um. Foram muitos os assuntos investigados, pensados e discutidos, muitas as práticas realizadas, muitas as possibilidades nos encontros que combinavam e recombinavam professores, arquitetos, turmas, produções, etc. Como diz a professora Renata Aspis, principalmente o etc.

Jorge Larrosa sugere que olhemos para a educação desde a relação entre experiência e construção de sentidos. Experiência, ele diz, é diferente de acontecimento: a experiência é fato que ocorre e nos atravessa, nos afeta, produz afetos e se inscreve em nós como uma marca. A experiência tem como componente fundamental a capacidade de formação e transformação. Já o acontecimento é da ordem do excesso, é o que ocorre e não nos afeta, não nos diz respeito. A experiência produz um saber singular e significativo, enquanto que o acontecimento forja um conhecimento objetivo, alienado, desses que não interessam a ninguém, pois não dizem respeito a ninguém. A tese de Larrosa é de que o Iluminismo, em sua busca incessante pelo cientificismo, converteu a experiência em experimento. E é essa a tradição que baliza a educação ocidental ainda hoje na qual a relação ensino-aprendizagem se dá através de experiências simuladas e sentidos previamente definidos (a resposta certa).

           

Essa educação produzida por eventos simulados estabelece uma passividade na relação educativa, o professor convoca o aluno ao pensamento e, ainda, dirige o tema a que tal pensamento deve se dedicar. Ou seja, o professor diz quando, como e sobre o que o aluno deve pensar. Para Deleuze esse é um pensamento que atua na reprodução do Mesmo. O pensamento, para o filósofo francês, não é algo natural, é resultado de um encontro com um problema. Este problema, anterior ao pensamento, é da ordem do sensível, provém da experiência; assim, ninguém pensa porque convocado a isso por outrem, mas somente quando afetado por uma experiência.

O aprendizado é igualmente um encontro único. A partir do problema que o afeta, cada um mobiliza seu repertório particular de conhecimentos, vivências e saberes e, em contato com o repertório do outro (professores, colegas, outros adultos e crianças, livros, enfim), trama soluções para o problema, construindo o aprendizado. Não se aprende na repetição, mas na criação coletiva e na produção de novos caminhos. Aprender carrega em si um caráter fortemente relacional, não se aprende como (ou a aula de Educação Física do início do texto terminaria cheia), se aprende com.

Uma educação que reproduz o Mesmo, além de ser uma estrutura que limita os alunos, também pode capturar os professores, reduzindo as possibilidades criativas, reflexivas e produtoras de ambos. Em contraste, a produção do conhecimento na experiência real - proposta pelo projeto A construção coletiva do espaço: habitar e construir - coloca a necessidade de lidar com o “erro” e com o imprevisto, recria relações de aprendizagem, tornando-as mais vigorosas. Refaz relações entre os alunos e o conhecimento, relações entre os professores e o conhecimento e, especialmente, relações entre alunos e professores: o professor não tem a resposta “certa” de antemão, mas tem ferramentas para construir respostas com os alunos, que também oferecem seus saberes. E, as respostas não devem ser definitivas, a exemplo do que conta o filósofo-poeta Tiganá Santana sobre suas conversas com cientistas Bakongo, “as respostas eram sempre inconclusas, como devem ser as respostas, obviamente...”.

 

O projeto construção, como muitas das crianças o chamavam, foi sendo edificado e alimentado a partir da própria existência, construindo-se a partir de si, seus encontros e suas contingências, o que exigiu uma postura sensível, corajosa e inventiva de toda a equipe. Os diversos relatos de aprendizagens, transformações e crescimento dos que fizeram parte dessa experiência, qualificam-na como uma possibilidade de currículo rica e potente, que permitiu a todos o interesse respeitoso e amoroso pelo interesse dos outros. É disso, afinal, que trata a educação.

 

 

[1] Ex-aluna (1988-1995) e trabalhadora da Escola, desde sempre muito entusiasmada com o que se constrói na Ágora.

Atualmente, cursa o mestrado na Faculdade de Educação da UNICAMP.

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